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É noite alta e a rua é um silêncio escuro. Tento dormir, mas padeço de uma insônia incomum, incômoda – não há o que me impeça o sono e, no entanto, sigo desperto, olhos em vigília por nada, um pouco tenso.

De repente, aquele canto – vindo do meio da noite.

Eu começo a escutá-lo aos poucos, como se viesse se aproximando sem pressa ou compromisso. Mas o canto vai crescendo e é tão bonita a voz que o entoa que decido abrir a janela para descobri-lo.

É uma mulher quem canta.

A mulher que recolhe garrafas plásticas e latas, depositando-as com cuidado pouco na carrocinha de arame que instalou numa bicicleta velha e com a qual, penosamente, ganha os dias. E o fato é que, enquanto separa do lixo aquilo que lhe pode valer algo, a mulher canta.

Canta numa língua que não conheço – o mais provável é que ninguém conheça, talvez nem ela mesma. Mas é tão despreocupadamente lindo o que entoa, e em sua voz parecem descansar tantas águas de cascata mansa, que as palavras que diz pouco importam.

O que importa é que é bela a canção estranha que sai desta madrugada.

Mas é um canto que também me inquieta. Porque me pergunto: por que canta com tanta leveza uma mulher que recolhe latas no meio da noite? Olho-a e não é preciso prestar muita atenção para saber que sua vida é dura: que motivos terá para esta cantoria tranqüila (e linda)?

Não me traz qualquer resposta, a desconhecida. Está ali para recolher latas – e cantar. E é o que faz, sem me ver, até que começa a se afastar, levando consigo suas latas e sua música.

Afasta-se cantando, a mulher.  

Eu que fique com as minhas perguntas.

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