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Rosali tem sessenta e três anos e amanhã é o seu último dia de trabalho na fábrica. Saiu a papelada da aposentadoria e, daqui em diante, quer descansar um pouco.

Olha as próprias mãos e elas têm dentro de si a história de muitas vidas. Porque a vida de Rosali também é a vida de tantas outras – as sapateiras de todas as fábricas pelas quais passou; estas colegas ao lado, que trabalham na mesma esteira onde vão sendo caprichosamente montados os sapatos. A cola, as marcas, os calos, as rugas, os sulcos – olha as mãos e elas não são delicadas.

Não são. Mas são.

Porque estas mãos rugosas e duras também são as mãos que embalaram e ninaram quatro filhos e hoje, incansáveis, fazem o mesmo com os netos que estão chegando. Estas mãos trincadas são as mesmas que há quatro décadas inteiras abraçam o marido. As mãos que acenam carinhos às vizinhas pelas manhãs e se unem em prece silenciosa todas as noites. São as mãos da delicadeza da receita, do cheirinho bom da cama feita e dos lençóis lavados, da casa aromando à alfazema, do manjericão colhido na hortinha tímida que ela e o marido inventaram no pátio.

São, sim, mãos delicadas. E as mãos de sapateira também são delicadas porque fazem maravilhas.

Ela olha as mãos e não consegue deixar de se emocionar quando lembra que na semana que vem não estará mais nesta esteira de sapatos. Uns calçados caros, finíssimos, um modelo mais bonito do que o outro. Igual às mãos de Rosali: delicados. Peças de arte, todas – e Rosali é uma das artistas.

Acontece que peças de arte custam caro e ela nunca conseguiu ter nos pés os sapatos que agora ajuda a fazer.

Mas se aposenta amanhã, depois de dezenove anos trabalhando nesta mesma esteira onde suas costas doem o tempo inteiro. Vai viver a vida, diz novamente a si mesma.

E o dono da fábrica já prometeu que vai presenteá-la com um par de sapatos.

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